Um episódio literário grandioso, destacado num poema ainda vivo após quase três mil anos desde a sua origem, revisto e adaptado por várias vezes.
Um episódio igualmente violento, graficamente explorado sempre que possível, e que assombra todas as memórias da Guerra de Tróia, como se só ele fizesse digna de nota uma luta que durou dez anos.
Deste episódio entre Aquiles e Príamo a propósito da recuperação do corpo violentado de Heitor, consegue David Malouf retirar uma extraordinária beleza.
Uma beleza, desde logo, literária com cada frase a ser tratada como um material precioso e posicionada no conjunto com o cuidado que merece a filigrana.
Os fundamentos desta excelente narrativa nunca surgem fragilizados por essa beleza permanente que David Malouf procura e atinge.
Uma beleza que se aproxima da poesia - o que, talvez, seja a forma mais própria e nobre de escever com base n'A Ilíada - e que é capaz de comover porque aproxima os mitos do humano.
Essa transformação completa dos dois protagonistas em seres humanos, retirando-lhes o peso do que têm a mais - "herói" e "monarca" - através de histórias de vida que os trouxeram até ao momento do encontro e que o transformam num momento de cruel sentido para a experiência que eles carregam consigo.
As descrições da vida comum vivida nas infâncias e juventudes de Aquiles e Príamo são vívidas e transformam-nos em personagens que são já mais - por serem primeiro menos - do que os símbolos de nobreza e tragédia que continuarão a ser.
Claro que é a identificação mútua pelos sentimentos de perda que depois permitem a estes mitos tombarem humanos um perante o outro - e perante o leitor - dentro daquela tenda.
A tenda onde um pai em sofrimento vai resgatar o corpo do filho das mãos de um "irmão" em igual sofrimento.
Tão simples quanto isto, a Guerra, a História e a Humanidade sintetizadas no encontro de dores que tornam a humilhação própria ou a bondade hospitaleira em meros adereços.
A manipulação até à simplicidade de Aquiles e Príamo não impede que Malouf revisite o tema central de todos os poemas épicos: a imortalidade.
Estes dois nomes nunca serão apagados da História porque intervieram num poema contado vezes sem conta.
Malouf faz o mesmo com Sómax, o condutor da carroça que transportaria Príamo e o corpo do filho, explorando aqui as possibilidades dramáticas que guarda para sempre o
A forma como Sómax convence o seu rei a mergulhar os pés no lago tem a força de carácter de uma figura igualmente imortal.
Com esse gesto apenas ele não só alivia o sofrimento do homem a seu lado, como revela a normalidade que está por detrás de qualquer ser humano, não importando a sua ascendência.
A sua marca é a de impôr uma pausa potencialmente caricata a um dos percursos mais trágicos já feitos por alguém, logo a tornando indispensável.
Se Príamo e Aquiles se transformam com Malouf em duas figuras ainda mais extraordinárias do que já eram, é através da intervenção de Sómax que Malouf nos leva a compreender por inteiro o que faz o talento de Malouf, o de adicionar a beleza do mundano ao que é épico e conseguir uma unidade fortalecidade entre ambas.
Resgate (David Malouf)
Bertrand Editora
1ª edição - Março de 2013
192 páginas
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