quinta-feira, 7 de junho de 2012

Acidente de escritor

Creio que já noutra crítica referi, em passagem, uma certa admiração pelas pessoas que fazem das auto-biografias confissões despudoradas.
Escolhem mostrar-se humanas a comporem uma vida a jeito para a admiração alheia e, com isso, não só se tornam personagens com quem nos relacionamos no imediato - ao invés de, suponho, estarem a tentar arrepiar caminho em direcção à memória que a História fará deles -, como tornam a leitura do livro muito mais interessante.
As vitórias são o que tornam os biografados ícones e as quedas são o que os tornam humanos. Mas as quedas reveladas por si só e não como momentos escritos de propósito para as vitórias que vêm com o reerguer-se.
Philppe Pozzo di Borgo mereceu-me essa admiração em O Diabo da Guarda, o segundo dos livros que constituem esta edição.
Aí ele não se perdoa os falhanços e não deixa de fora as vulnerabilidades. E estes não são os causados pelo acidente que o deixou tetraplégico e totalmente dependente de outros, mas antes por uma necessidade universal. Ou necessidades.
Necessidade pelo afecto da camaradagem. Afecto que venha de alguém que não mostre preocupação apenas porque o seu salário depende disso.
Necessidade pela escapatória da situação corrente. Situação limitada não só fisicamente à cadeira onde está instalado mas a uma situação de vida esterilazada da diversidade cultural.
Necessidade pelo desafio que o equipare ao passado. Integrar um "jovem rebelde dos subúrbios" numa vida como a que ele levou, a partir de uma posição de dependência, pode ser tão difícil quanto gerir a casa de champanhes Pommery.
Philippe conta as peripécias da contratação que fez de uma forma tão honesta que nos pode parecer que  o deixaria menorizado (ainda mais?) visto que está limitado a uma cadeira de rodas.
Lê-se a confissão de que perdeu dinheiro ao investir num negócio de transporte, do qual Abdel se aproveitou para empregar alguns dos seus amigos - pequenos criminosos - num serviço a que faltava ainda alguma transparência, e fica-se com a sensação de que ele o fez porque criou um dependência emocional do mesmo grau da dependência física. Que teria sido, através de tácticas casuais, manipulado ou chantageado a fazê-lo.
Mas a sua oposição final ao negócio e as suas exigências revelam que ele o fez ainda no domínio pleno das suas capacidades, que o fez em nome de uma esperança num empreendorismo individual e que o fez em nome da sua própria preponderância em algo criado por si (depois minada, claro).
Revelador dessa preservação é, acima de tudo, O Segundo Fôlego, a primeira das obras do livro. Essa uma memória mais extensa, indo até à infância, acaba por revelar um escritor mais dedicado à sua arte que dá grande cuidado à escrita e vai usando ferramentas literárias variadas que enriquecem a leitura.
A sua acuidade mental não diminuiu com o seu acidente e este, apesar de não ser nunca desejável, proporcionou-lhe o tema (físico) e o espaço (mental) que ele necessitava para revelar um lado filosófico que todo o Homem tem mas a que poucos se dedicam.


O Segundo Fôlego seguido de O Diabo da Guarda (Philppe Pozzo di Borgo)
Editoral Presença
1ª edição - Abril de 2012
208 páginas

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