Capitalizando a moda dos policiais suecos, Três Segundos é o exemplo que me leva a especular que uma parte da escrita policial nunca conseguirá sair do país e, nela incluída, uma parte da que é melhor escrita.
Isso fica a dever-se a um papel de elucidação que os policiais nórdicos parecem ter e cujo funcionamento para o público que mora longe da região onde se reune a frieza dos países nórdicos pode não ser eficaz. Mas este é um tema que se tornará mais evidente ao longo desta crítica.
Três Segundos é um thriller e não tanto um policial (distinção que é importante para mim), problema que a correspondência entre "ficção criminal" (tradução literal) e "romance policial" não resolve.
Na estrutura de Três Segundos não há pistas ou expectativa de revelação de um culpado, há uma construção de um conjunto de eventos cujas intenções e cujos causadores estão bem patentes.
O que vem depois é um desfecho que não tem nada de inesperado, mas que vem contribuir para o ponto argumentativo que o livro está prestes a fazer.
Um desfecho que tem dois momentos essenciais, um primeiro que envolve reféns e uma explosão e um segundo que envolve política. O primeiro é o momento de acção, o segundo o momento de explicações.
O segundo momento depende da revisão dos elementos que levaram até ao primeiro, numa repetição que torna a leitura irritante na falta de expectativa no que esteja por desvendar. A única coisa que sobra por saber é a resposta a duas perguntas "Quem sobrevive?" e "Quem será preso?".
É o problema de utilizar uma estrutura cinematográfica americana para a história, com o momento de acção como culminar antecipado de uma história que deveria fazer durar o seu tema criminal.
Um problema sobretudo quando para além da vertigem da acção o livro faz-se da procura de fidelidade à realidade da Suécia.
Isso reflecte-se estruturalmente na sequência de capítulos que vão do facilitismo do page turner à delonga da reprodução do quotidiano de ambos os lados da acção criminosa. Ora muito breves e escritos com grande economia para servir as acções, ora longos e palavrosos para servir o realismo descritivo, os capítulos acabam em desequilíbrio acentuando a mudança radical de ritmo com que o leitor atravessa o livro.
Isto não impede que existam partes muito bem escritas e igualmente eficazes. Duas que se destacam são a vida no interior da prisão e a envolvência final com a personagem do detective Ewert Grens.
A relação com um ambiente fascinante nas suas duras regras e a relação com uma personagem que nos motive a acompanhar a trama de uma ponta à outra. Se o ambiente seria o que nos faria manter o foco no livro, o personagem - mesmo se a tornam um depósito de vários estereótipos e a sua existência tem vários pontos demasiado vagos por culpa desta ser o primeiro contacto que temos com ele mas não ser a sua primeira aparição - seria a presença recorrente que nos tornaria leitores sistémicos dos autores.
Nenhuma delas dura páginas suficientes, mecanizadas no objectivo principal do livro, mas são bons enquanto duram trazendo a lume o que de melhor pode ser explorado num policial sueco.
Um objectivo central que é o de denúncia de processos desumanizados que os poderes políticos e policiais exercem na Suécia para travarem a invasão das máfias estrangeiras. Denúncia do pouco valor dado à vida humana, sobretudo dentro das prisões, e da total falta de consequências para comportamentos indignos do governo local.
A consciencialização de um povo para quem (parece-nos) a existência é tão serena que se esquece de que já existe crime dentro das suas fronteiras é um objectivo reforçado pelas páginas finais onde os autores separam factos de ficção. Aí indicam que apenas pessoas e locais foram inventados e que, pelo contrário, as descrições do tráfico de droga ou da utilidade desta para as autoridades na gestão dos presos são retirados directamente da realidade.
Se essa realidade é universalmente interessante em certos pontos, também é universalmente desinteressante nos momentos em que repassa culpas para que os suecos deixem de encarar os seus burocratas com ingenuidade.
A exploração insuficiente dos elementos geralmente admiráveis - acima referidos - acentua o facto de haver elementos que não funcionam fora do seu país de origem.
A escolha dos livros a publicar não pode somente adaptar-se à moda vigente mas tem de ser capaz de se sustentar para lá da sua integração nesse momento que terminará.
Não podia terminar sem fazer um reparo à tradução. Feita a duas mãos - suponho que um casal - é assinalável a coerência interna da mesma.
No entanto há uma diferença no resultado final que parece distinguir o trabalho de cada um e cuja culpa final até pode recair sobre a revisora. Trata-se de um número não muito elevado mas notável de gralhas que são na sua maioria artigos de género contrário ao do substantivo que se segue ou pedaços de frases pertencentes a duas formas de tradução que ficaram no resultado final quando uma deveria ter substituído a outra.
Estas gralhas desaparecem sensivelmente a meio do livro e isso parece indicar o ponto em que o livro "mudou de mãos".
Num momento em que os livros em língua inglesa são igualmente acessíveis e bastante mais baratos é necessário que a qualidade dos detalhes - capa, papel, impressão, tradução... - torne os livros em português mais apetecíveis que a alternativa.
Detalhes que sejam credíveis, também, pois com uma tradução feita a partir do inglês pelo menos que se indique o título original correcto. Ninguém acredita que um policial sueco tenha um título inglês...
Três Segundos (Roslund e Hellström)
Planeta Manuscrito
1ª edição - Junho de 2011
496 páginas
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