quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Os retalhos da realidade

Como a viagem de avião na qual o protagonista-autor passa a maior parte deste livro, este livro é um processo em caminho e não uma ligação entre dois pontos.
Há uma pergunta de partida sobre o porquê do avô do protagonista-autor ter dado o nome ao seu barco. E até há uma descoberta da resposta a essa pergunta.
Só que não há um longo processo de estruturação da saga familiar em torno dessa pequena interrogação que parece ter passado de geração em geração até se tornar no grande mistério do protagonista-autor.
As razões das aventuras inexplicadas do seu avô, em alto mar ou em terra firme, são o propósito inicial do protagonista-autor para falar de si, dos seus pais e do seu avô. Mas ele não o conseguirá assim como o julgava possível, acabando por perseguir pequenos fragmentos de informação em torno dos quais ele poderia trabalhar para alcançar uma narrtiva convincente.
Ficcionalizar em torno dos dados que se têm é um processo de fechar caminhos, estancar as dúvidas numa organização satisfatória mas talvez não sedutora como será o mistério tal como ele existe como ponto de partida e, depois, como muitos pontos de chegada.
Aquilo que o protagonista-autor acaba por mostrar é a sua procura pelo detalhe do que foram os seus antepassados. A afinidade emotiva do avô pelo artista de murais Aurelio Arteta ou a coragem do seu pai a enfrentar ondas gigantes ao largo da ilha de Rockall são temas em que ele se torna um especialista.
Ele é tanto pesquisador como rememoriador, relendo diários alheios e fazendo confissões próprias.
O protagonista-autor tem o ofício de respigador, compilando e agregando os fragmentos possíveis da sua narrativa. Ele deixou de ser romancista para se dedicar ao detalhe, deixou de procurar uma imagem grandiloquente e geral de uma descendência familiar para penetrar a fundo nos momentos que definem a sua imagem do seu avô e do seu pai.
A partir desse momento deixou de ser capaz de escrever o romance como prometera no início da narrativa e passou a ter de (d)escrever o processo de desvendamento de um traço que conjuga História e histórias.
Assim a sua narrativa são, na verdade, duas aventuras (dois romances, até): aquela que se lê nas frinchas de texto que olham as histórias do que os antecederam e aquela que traduz a sua própria demanda para preencher as falhas do seu conhecimento.
A sua escrita é a sua aventura, aquela que se equipara às dos seus antepassados e que, por isso, tem de facto de figurar lado a lado com elas.
O seu livro é o processo de união, uma reconstituição da verdade para o protagonista a que assistimos com deleite equivalente àquele com que esperamos a revelação maior do porquê de ter existido um barco que se chamava Dois Amigos.
Até porque essa revelação chega e não parece nada literária, traz aquele desapontamento fascinante que só vemos porque estamos a ler o romance e a sua construção ao mesmo tempo. Caso contrário a ficção teria trabalhado a revelação até o seu âmago se tornar anti-climático de tão extraordinário.
Dessa forma o livro é um método experimentalista - com emails transcritos, registos da distância a percorrer pelo avião em que viaja ou descrições minuciosas de escolhas de filmes para visionamento (situação que até na própria vida descartamos da memória, quanto mais na ficção) - de trabalhar o retalho da realidade.
Sem alienar o leitor, Kirmen Uribe deu em olhar para as costuras da manta de retalhos e demonstrar que há lá tanto para ver como no padrão aleatório que o olhar distanciado torna em agradável conjunto unificado.


O Dois Amigos (Kirmen Uribe)
Planeta Manuscrito
1ª edição - Janeiro de 2011
184 páginas

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