Há que retornar à felicidade e à simplicidade com que ela foi transformada em algo mensurável para falar d'A factura, o livro em que um anónimo cidadão sueco enfrenta a cobrança por tudo aquilo que usufruiu na sua vida.
Um conceito aplicado ao indivíduo que parece derivado de um capitalismo que vive da dívida dos países: pelas regalias que cada um desfrutou, haverá de pagar de forma substancial.
Jonas Karlsson vem mostrar como o Relatório Mundial da Felicidade se pode tornar numa ferramenta de cobranças.
Afinal as siglas do Fundo Monetário Internacional e daquilo que David Machado chamou Índice Médio de Felicidade são o reflexo uma da outra...
Confrontam-se o indivíduo e o sistema. O primeiro sem compreender como a vida que vê como medíocre pode ascender à maior dívida do país, o segundo sem compreender como podem ter encontrado alguém que vive uma vida tão satisfeita sem que lhe tenha sido dado algo mais do que aos restantes.
O problema para o sistema é ter encontrado alguém que, nos parâmetros da sua medição, está no topo da escala de felicidade quando, ao mesmo tempo, tem tão pouco para mostrar.
Um apartamento arrendado, um trabalho com que só sustenta o prazer cinéfilo e um amor de que já só resta a memória.
Embora não enfrente grandes dificuldades na sua vida, não tem um sucesso significativo. Aguarda que algo melhor venha na sua direcção, não faz nada para o perseguir.
Simplesmente vive no contentamento daquilo que pode ter, aproveitando um gelado como a grande recompensa do seu continuado esforço em viver.
Não se trata de um optimista absoluto como o protagonista que David Machado imaginou, é alguém que perante o peso da consciência súbita de ter uma dívida incomportável se distrai com a descoberta de uma divertida forma de brincar com o ar que lhe enche as bochechas.
Isso permite que Jonas Karlsson trate que o seu protagonista faça um pouco daquilo que se assinalava em falta no livro de Machado, confrontar-se com a forma como julga a sua própria vida.
A sua tentativa de compreensão de como a sua dívida é tão grande faz-se através dessa reflexão sobre se avaliou a sua vida com suficiente gravitas.
Ele reconhece que terá mentido no inquérito que lhe enviaram, que fez da sua vida um pouco mais excitante do que ele próprio a achava para parecer melhor perante os que o julgariam.
Só que este protagonista é um descomprometido até com a consciência de si próprio e ao falar destas novas ideias com o seu contacto na empresa que lhe cobra tanto dinheiro, ele próprio as vai esquecendo.
Ainda que a mulher do outro lado da linha de telefone descubra nos seus desabafos informação que lhe duplica a gigantesca dívida, ele não teme isso e vai formando uma paixoneta por aquela voz de que pouco mais sabe.
O protagonista é, até certo ponto, frustrante para quem sente necessidade de julgar a vida com mais cuidado, o que neste caso é frustrante para aquilo que o livro não chega a perseguir até uma conclusão mais satisfatória.
O livro dá ao protagonista uma (dupla) recompensa por este rejeitar uma crescente preocupação que acompanhe o crescente tecto da dívida que lhe é impossível pagar. Um final satisfatório para o fundo de contestação que quase todos têm perante a ditadura empresarial.
Segue uma linha que é própria do filme romântico - ou não fosse o Karlsson, primeiramente, actor - e que referencia o próprio cinema para demonstrar que os longos mas discretos olhares românticos que um vê numa cena podem, para outro, ser apenas um plano que durou tempo demais. Sem que nenhuma esteja errado ou tenha de rejeitar a concepção (de vida...) do outro. Pelo contrário, gostando do contraste.
Em vez de aprofundar os temas que aborda o autor prefere demonstrar que cada um deve manter-se fiel à sua própria identidade e isso acabará por ser recompensado com uma vida que o satisfaça.
Em vez de desacomodar o leitor, o livro traz conforto, o que é compreensível visto que a premissa de Karlsson não aguenta um escrutínio detalhado, nem mesmo num romance de breve fôlego como este.
Por isso mesmo é que o seu protagonista é um alheado, que falha em saber da cobrança geral pela televisão ou pela internet.
Caso contrário ele próprio não poderia ser um elemento de certa inocência enfrentando um sistema que não compreende a sua forma de ser, personagem que é uma simplificação Kafkiana.
Este é um homem em boa parte inconsciente acerca do que o rodeia, mas é na mesma medida alguém com pouco interesse no mundo tal como ele se tornou.
Por isso é que trabalha num moribundo clube de vídeo e preserva uma colecção de impecáveis vinis que para os avaliadores dos seus rendimento não têm qualquer valor.
Aqui estaria algo que Karlsson devia ter procurado ao invés de derivar para o lado romântico, um desagrado com a forma como a felicidade, tal como os objectos, pode ser julgada no seu valor por desentendidos da matéria.
Se ninguém conhece uma vida senão quem a viveu, a sua avaliação só poderá vir daí e, mesmo assim, o grau de felicidade própria só poderá ser julgado com poucos erros à distância, talvez no momento do último suspiro.
Só a mensagem da espera profunda é demasiado triste e estes livros que querem falar da medida da felicidade querem conseguir aumentá-la no seu final. O que não chega a ser suficiente.
A factura (Jonas Karlssson)
Alfaguara Portugal
1ª edição - Julho de 2016
168 páginas
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