Galveston começa com o estabelecimento de um cenário que se poderá quase considerar um clichê do noir.
Um homem de mão de um mafioso de Nova Orleães coloca-se em fuga depois do que parece ter sido um atentado à sua vida mandatado pelo homem a quem responde.
Consigo leva uma prostituta cuja vida salvou e que não passa de uma jovem rapariga perdida na vida.
As personagens soam como os arquétipos do género e correndo estrada fora parecem destinados a uma variação mais dentro do género.
Isso muda depois de Nic Pizzolatto esboçar o seu cenário, económico e reconhecível.
Afinal, na peugada destes dois vai o medo que eles sentem. Se alguém para além desse sentimento não o sabemos.
Juntos não dão por si atraídos um para o outro, ele sujeito à pulsão para com um corpo jovem, ela sujeita à segurança de um corpo gasto.
Nem sequer vão sozinhos, Roy o homem à procura de redenção e Rocky a rapariga à procura de aceitação.
A irmã dela, Tiffany, junta-se-lhes e é Rocky quem se coloca numa situação periclitante, arrancando-a às garras do seu padastro à força de bala.
O que eles percorrem é a América esquecida, procurando um lugar onde eles próprios possam assim permanecer.
O seu refúgio é um motel em Galveston onde as pessoas não estão de passagem. Lá vive uma comunidade de inadaptados - um adjectivo mais simpático do que o mais instintivo falhados.
Logo a comunidade vê em Tiffany a hipótese de se recuperar, de produzir alguém de bom que possa dali recuperar e retornar à sociedade.
Cuidam dela, apaparicam-na, chegam a levá-la à praia - que está logo ali mas parece tão distante do motel no Texas como um qualquer destino paradisíaco do outro lado do mundo!
Roy adquire confiança de que pode confiar àquela gente as duas raparigas, mesmo se o passado delas vem para atormentar o idílio (à escala do que o cenário pode oferecer).
Todos os passados podem, afinal, ser apagados quando se chega a um novo local. Só a perspectiva do que virá interessa quando se está perdido no coração da América.
Para Roy o que virá é um cancro prestes a matá-lo. E com ele a vontade de deixar um legado que recupere a sua imagem para si próprio: um futuro, não para ele, mas para elas as duas.
Claro que sabemos que não será bem assim, pois as prolepses que nos trazem de 1987 ao presente dizem-nos que Roy permanece vivo e carregando o tormento da sua sobrevivência - não só psicológico mas também físico.
Não sabemos o que terá acontecido mas sabemos que a história daquela fuga terá um desfecho tormentoso. Tal como a tempestade que em 2008 se encaminha para Galveston promete tudo destruir!
Roy não pôde selar a sua vida num momento de redenção antes de uma morte precoce e dolorosa como talvez ache que merece.
Afinal, como leremos, o passado não pode ser reescrito por vontade exclusiva dos que o carregam. Há que garantir que os à sua volta o apoiam e nem todos são como as duas irmãs encatadas pela pureza de Tiffany.
Roy tem de recorrer aos seus talentos antigos enquanto Rocky vai escorregando de novo para o papel a que ele pensava tê-la afastado.
Nesse momento ficamos com a certeza que Nic Pizzolatto escreve a essência da América neste noir. Um banho de sangue para uns para que outros possam ter direito ao seu naco de esperança.
Nem mesmo esse corte brutal com o passado evita que a ilusão do futuro deixe uma dúvida na sua origem.
Roy sabe-o e espera que o passado o reencontre. Teme que seja o passado que reclama a sua vingança, espera que seja o passado que lhe deve um agradecimento.
Pela pena de Nic Pizzolatto toda esta história é voraz e imparável, escrita numa vertigem que emula a velocidade alimentada pela mistura de receios e vícios dos seus personagens.
As personagens são como são e tomam decisões como quem não tem opções nem pode hesitar. As razões ficam para quem tem tempo de parar para pensar. Aqui só podem agir e seguir adiante.
Nic Pizzolatto faz valer o seu estilo e escreve na senda de Raymond Chandler, reconhecendo que é o espírito do conjunto (e do tempo e do lugar) que interessa e que sai como grande personagem do seu livro.
Galveston (Nic Pizzolatto)
Editorial Presença
1ª edição - Fevereiro de 2015
240 páginas
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