Há muito tempo que não me acontecia isto, recusar liminarmente um livro por culpa directa e exclusiva da escrita do seu autor, em igual medida ridícula e trágica.
Desta vez, antes que o primeiro capítulo do livro terminasse, por três vezes inspirei fundo para superar a raiva com que o livro me motivava a atirá-lo contra uma parede, o que só não podia fazer por estar em local público.
E antes que o primeio capítulo do livro terminasse fechei-o para não mais o abrir, ficando-me apenas um resquício de raiva por ter sido este o livro que escolhi para transportar comigo nessa manhã e, à conta disso, ter desperdiçado os períodos que habitualmente devotaria à leitura.
Falarei então desses três momentos que me fizeram duvidar da justeza do cuidado que devoto aos livros.
O primeiro ocorreu logo à segunda página onde li Estou habituada a ver-lhe o rosto espalmado em 2D num ecrã plasma, na privacidade do meu apartamento em Nova Iorque, mas aqui está ele em tamanho real e em carne e osso a 3D... .
Se continuei após esta linha foi por acreditar que num primeiro romance, sobretudo no seu início, alguns escritores podem ainda estar à procura de uma voz e, assim, cometer alguns erros. Por isso superei a estupidez do uso da terminologia referente à percepção de profundidade associada, mais correntemente, ao cinema e a redundância das mesmas que repetiam a ideia melhor expressa imediatamente antes.
O segundo apareceu à página doze, quando começava a crer que a minha ideia anterior se confirmava e que a autora merecia que se deixasse passar aquele pedaço de má escrita: Olhei para ela, vislumbrando-lhe o rosto pálido e ansioso para lá da marca da maquilhagem, uma gueixa de meia-idade com base bisque da Clinique.
Sem nenhum entendimento de questões relativas a este produto de maquilhagem, não consegui - e continuo sem conseguir, visto que para mim bisque é um prato culinário - entender o significado final da comparação. E gostei ainda menos de ver a publicidade a uma marca que tive de deduzir dedicar-se aos cosméticos. Continuei, já perto do desespero, apenas porque não tinha comigo mais nada para ler.
O terceiro e decisivo momento, na página vinte e um, que obriga a uma transcrição um pouco mais longa mas, também, mais traiçoeira:
- E a cor?
"Pantone número PMS 167", pensei imediatamente, mas as outras pessoas não sabem as cores do mundo pelos respectivos números de pantone, por isso respondi:
- Cor de caramelo. - Os teus cabelos faziam mesmo lembrar caramelo. A parte de dentro de um bombom Allegro, para ser mais precisa. Puro líquido reluzente.
Quando parecia que a autora tinha conseguido dar a volta ao seu mais recente defeito - que raio é pantone, perguntava-me eu - atribuíndo-o à sua narradora e transformando-lhe a linguagem, logo volta ao mesmo, usando como referência uma outra marca que nem sabia existir.
Não sei se este uso de marcas é um acto de preguiça que poupa uma dúzia de palavras a quem escreve ou um acto de modernismo que insere o livro no reconhecível quotidiano corrente e atrai mais compradores, mas muitos dos livros que subsistem para lá do seu tempo valem-se de descrições compreensíveis a qualquer leitor e em qualquer período.
Este, pelo contrário, se for lido quando as marcas já não existirem ou quando estas tiverem alterado as suas características será um anacronismo sem interesse e (ainda mais) sem sentido.
O uso de tais referências é um logro que parece até funcionar melhor para vender os produtos do que para dar substância à imagética que se faz do livro. Digo isto porque, entretanto, vivi o afortunado acaso de experimentar um desses bombons, sendo que o interior dos mesmos não se parece nada com o "puro líquido reluzente" descrito (mas logo esperado enquanto o colocava à boca).
Depois deste terceiro momento de má literatura só havia mais página e meia até que o capítulo terminasse e ainda ousei pensar em percorrê-las só por descargo de consciência. Mas não, ali parei e não mais pensei no assunto até me poder vingar do livro publicando esta breve memória de um ressentimento que se apagou, imediata e felizmente, com o livro seguinte.
Tenho de admitir que, por comparação com o livro que, neste mesmo mês mas em 2009, abandonei (sigam o link do primeiro parágrafo, se quiserem saber qual foi), este constituiu um desapontamento maior. Mas a culpa tem de me ser imputada neste caso mais do que no anterior.
A diferença está no facto de, há três anos atrás, ter pegado no livro na ânsia de ler tudo aquilo a que tivesse acesso rápido e demonstrasse alguma actualidade literária, e agora ter sido atraído pelo conjunto constituído pelo design da capa, pela atenção internética e pelas críticas positivas (com destaque para a do The New York Times Book Review
Na medida contrária a estas razões estava, na altura, mais avisado para a hipótese de vir a não gostar do livro do que mais recentemente.
Na altura queria insuflar alguma vida ao blogue, agora deixo passar o tempo sem preocupações de maior (passam-se agora semanas desde que peguei neste livro) mas nem num caso nem no outro tive dúvidas em descrever sem piedade o desprezo que me causou o que li.
Claro que fica em aberto a hipótese de ambos os livros terem um enredo brilhante que no final surpreende o leitor. Mas não tenho vontade de me flagelar com má escrita só para ter uma surpresa cujo mérito e a memória desaparecem no segundo a seguir a fechar o livro.
Irmã (Rosamund Lupton)
Civilização Editora
1ª edição - Janeiro de 2012
368 páginas
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